quarta-feira, 5 de março de 2014

Era ainda o sentimento da nossa própria importância

António Telmo

"O grupo de filosofia portuguesa reunia-se nesse tempo na Brasileira do Rossio, hoje, como a maioria dos cafés, transformada em banco. Vale a pena descrevê-la, uma vez que muitos leitores já não puderam conhecê-la. É hoje em mim uma impressão de duas colunas de mármore castanho e brilhante da Arrábida numa casa comprida, escura e cheia do fumo dos cigarros. De um e de outro lado, espelhos paralelos multiplicavam as suas imagens até ao infinito. Supúnhamos ser uma antiga loja maçónica e os mais novos, na sua fantasia de adolescentes, viam no facto de ali ser o lugar de reunião da filosofia portuguesa uma escolha intencional dos mais velhos. 
Constava que Álvaro Ribeiro era maçon. Para nós, a Maçonaria que, mais tarde, viria a patentear-se-nos como uma organização política de práticas e fins medíocres, era um lugar misterioso do espírito, que continha, envolvida de grande segredo, o ensinamento primeiro e último. Esta falsa noção actuava como um catalisador. Não seria, pois, possível atingir o verdadeiro conhecimento através dos livros e da reflexão própria. Eu não aprendera ainda a separar o homem social do homem real, sobretudo ou muito menos naqueles com quem privava diariamente. Conhecemos uma pessoa por um nome que nada nos diz na medida em que serve apenas para a determinar na multidão indefinida das outras pessoas; ligamo-la a uma família, a uma profissão, a um meio social; atribuímos-lhe mais ou menos valor; relacionamo-la principalmente connosco, com os nossos interesses, prezando-a ou desprezando-a conforme actua em relação ao sentimento que vivemos da nossa própria importância. 
Era ainda o sentimento da nossa própria importância que funcionava na criação de um falso mistério à volta da pessoa de Álvaro Ribeiro. A possibilidade de virmos a ser iniciados na Maçonaria através dele tornara-o prestigioso e prodigioso a nossos olhos. Púnhamos assim véus sobre véus a esconder o verdadeiro mistério que é o do ser singular, tal como é em si, na relação vivente com a insondável origem donde todos os seres provêm e perdíamos assim a possibilidade de nos conhecermos, perscrutando-nos, na mesma insondável relação. Todavia, eu gostava de subir o Chiado lentamente, porque era um espanto a singularidade de cada rosto, olhado numa espécie instintiva de dupla atenção. Todos aqueles rostos, um a um, sobretudo os olhos, emergiam repentinamente do desconhecido que me habitava. (...)"

António Telmo
Na casa de meu pai, éramos três irmãos (inédito)
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