sexta-feira, 11 de maio de 2012

1888


"A avaliar por alguns textos até 1979 ainda inéditos e publicados em Sobre Portugal*, Fernando Pessoa terá chegado a admitir que o Encoberto era... ele próprio. Esta convicção é rastreável pelo menos entre as datas de 1925 e 1928 ou 1929, não é tão insólita como pode parecer à primeira vista, se considerarmos:
  1. A adesão de Pessoa ao conceito de uma República Aristocrática; logo, a transferência de uma Rei hereditário para uma personalidade «eleita» do alto.
  2. A desilusão, não só pela morte de Sidónio, mas sobretudo pela pouca influência que o Presidente-Rei deixou atrás de si.
  3. A sua exigência de um Quinto Império, não material, mas cultural e espiritual.
  4. O seu conceito de que os verdadeiros criadores de civilização são as grandes figuras intelectuais, como  Camões, Shakespeare - e o anunciado Supra-Camões dos artigos de 1912 na Águia.
  5. A sua insinuação de que esse Supra-Camões viria a ser o poeta então desconhecido que já experimentava dentro de si a força de um grande génio criador.
  6. A consciência da sua espiritualidade supranormal, ponteada de inspirações, iluminações, visitações enigmáticas e até fenómenos místicos, conforme vimos no capítulo anterior.
  7. Daí, a crença de que ele próprio era, como vimos, um Emissário, comissionado do Alto para trazer uma Mensagem de salvação ao povo português.
  8. Crença esta por assim dizer confirmada pela sua descoberta de que a Ordem Templária de Portugal estaria extinta em dormência desde cerca de 1888, data do seu nascimento, e de que, por conseguinte, o testemunho lhe fora passado por força do destino.
  9. E, por outro lado, a convicção de que ninguém, como ele próprio, teria entre os seus contemporâneos a capacidade de ser mais paradigmaticamente português, isto é, de ser tudo, de todas as maneiras, ou, como cantou pela voz de Álvaro de Campos no extraordinário poema, já citado, Afinal a melhor maneira de viajar é sentir - sentir de todas as maneiras (...)
  10. A certeza de que ninguém, entre os Portugueses, preencheu tão cabalmente aquela condição, ele que foi não só Fernando Pessoa, mas também Campos, Reis, Caeiro (...) desta forma realizando em sia, de forma fingida mas real, aquela supra-humanidade ou aquela semidivindade que funda o paganismo. Lembremos aqui a sua citação de Píndaro: A raça dos deuses e dos homens é uma só.
  11. Enfim, a sua descrição astrológica de uma das quadras do Bandarra, a que mais adiante nos referiremos.
Assim este homem ensimesmado, angustiado, quase apagado e aparentemente modesto, por alguns anos guardou para si, com a megalomania do génio, não diremos a convicção, mas a suspeita de que, mais do que um Emissário, seria talvez um Intermediário pesado de transcendência, esse encoberto misterioso predito pelo Bandarra e que teria vindo a esta terra infeliz para fundar o Quinto Império, o Império do Espírito Santo. (...)"

António Quadros
"1888" em Fernando Pessoa - Vida, Personalidade e Génio (1984) , pp. 244-248


[Sobre este assunto vale ainda a pena ler o texto "Fernando Pessoa - Eu ser descoberto em 2198", de Jerónimo Pizarro publicado na Revista Ler nº 109, Janeiro de  2012, disponível aqui.]

*Sobre Portugal - Introdução ao Problema Nacional. Fernando Pessoa (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Morão. Introdução organizada por Joel Serrão.) Lisboa: Ática, 1979.

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